Cidadão não! Engenheiro civil formado. Melhor que você! - Generalizando
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Cidadão não! Engenheiro civil formado. Melhor que você!

Cidadão não! Engenheiro civil formado. Melhor que você!

Começo esse texto pedindo licença aos (as) leitores (as) do blog, pois os artigos publicados aqui dedicam-se a analisar e refletir sobre o debate de gênero. No entanto, diante do evento ocorrido, no Rio de Janeiro, no último fim de semana, me senti provocada a escrever sobre isso. Primeiro porque, desvendar o que está por trás do discurso da mulher que ofendeu verbalmente um fiscal da prefeitura do Rio, durante uma inspeção em bares na Barra da Tijuca[1], revela o preconceito de classe e a equivocada ideia de cidadania que parte dos brasileiros cultivam. Segundo porque, a historiadora que vive em mim, fez ascender o alerta para necessidade de historicizar a narrativa de construção da cidadania no Brasil.

Como é sabido, a cidade do Rio de Janeiro tem flexibilizado a quarentena e desde o dia 02/07/2020 os bares e restaurantes voltaram a funcionar. De acordo com as autoridades, esses estabelecimentos devem seguir rígidas normas sanitárias e evitar aglomeração, além disso, serão fiscalizados pelo poder público. Bom, na prática não é bem isso que anda acontecendo. Desde que voltaram a abrir, o que vemos ser noticiado é a presença de indivíduos se aglomerando e sem atenção as normas de distanciamento social. A fiscalização é insuficiente, uma vez que não há como controlar todos os estabelecimentos da cidade.

Diante deste cenário, chamou atenção da sociedade a maneira como uma mulher, acompanhada de um homem, tratou um fiscal da prefeitura que realizava seu trabalho em um bar da Barra da Tijuca. Ela ofendeu o fiscal, quando o mesmo se referiu ao homem que estava em sua companhia como cidadão. Nesse momento a mulher advertiu: “cidadão não, engenheiro civil formado. Melhor que você! ”. Fico pensando no equívoco, não é? O que faz um engenheiro civil não ser um cidadão? Ou ser melhor que um cidadão? O que pode parecer óbvio para alguns, não é de fato para todos.

A fala da mulher em questão revela muito de como nossa sociedade construiu uma imagem equivocada da cidadania. Uma cidadania que se baseia em distinção, onde aqueles que se julgam superiores, por sua cor, seu dinheiro, pelos lugares que frequentam, reivindicam para si uma cidadania “diferenciada”. No caso em questão, o julgamento antecipado de um indivíduo que se apresenta como fiscal e aborda um Engenheiro Civil, foi o suficiente para que a mulher considerasse que o último fosse superior ao primeiro. Se de fato o que estivesse em pauta fossem os títulos acadêmicos e a qualificação, o fiscal da prefeitura, Flávio Graça, que é médico veterinário com mestrado e doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estaria em uma situação mais confortável.

No entanto, que importa é compreender como essa leitura da cidadania é perniciosa para a nossa sociedade e como ela é baseada no individualismo para além, é claro, de elementos como classe, cor e gênero. Como bem nos lembra Carvalho[2], em um primoroso texto sobre cidadania no Brasil, em terras tupiniquins, existem três classificações de cidadão, a saber: o doutor, o crente e o macumbeiro.  O doutor é em geral o home branco, bem vestido e privilegiado. Ele é titular dos direitos constitucionais e “merece e recebe” a deferência dos agentes da lei. O segundo tipo, o crente, é o trabalhador honesto e assalariado e que pode ter seus direitos violados em alguns momentos. A última classificação é a do macumbeiro, aquele tipo de cidadão que na verdade está à margem da sociedade, que não têm seus direitos garantidos. O que perpassa as três classificações é o recorte de classe, que levou, mesmo que equivocadamente, a mulher a considerar seu companheiro/marido superior ao fiscal.

A construção da cidadania no Brasil não seguiu, de acordo com Carvalho e outros autores, a lógica sequencial de conquista de direitos que se deu em países europeus e nos Estados Unidos da América. Marshall[3], autor que teoriza sobre a conquista dos direitos na Inglaterra, advoga que os ingleses buscaram conquistar primeiro os direitos civis, depois os políticos e só em seguida, por meio da ação política é que se conquistou direitos sociais. Essa sequência, que possui uma lógica e uma razão de ser, seria responsável por uma experiência plena da cidadania. Para Carvalho, esse ponto indica porque nossa experiência como cidadãos se apresenta de maneira tão equivocada.

Não tivemos no Brasil, envolvimento massivo na luta por direitos. Em alguns momentos, como por exemplo, durante a Era Vargas alguns direitos civis e os direitos políticos foram violados constantemente, ao mesmo tempo que o Estado Varguista concedia os direitos sociais. A ausência de luta e de um sentimento de conquista reforçou a precarização da cidadania brasileira levando a intepretações equivocadas e a manifestações sem nenhum tipo de comprometimento com o sentido do termo cidadão, como aponta o antropólogo Roberto Damatta. A utilização de meios de navegação social como o “você sabe com quem está falando?”, desnuda uma sociedade hierarquizada, onde a posição social vale mais do que a lei.

Outro ponto importante é a confusão que alguns/muitos fazem em relação à liberdade. Esse ideal democrático e fruto de grandes embates históricos, aqui parece ser descolado do exercício de cidadania. A liberdade é utilizada no discurso e na prática para “justificar” comportamentos egoístas, como no caso da necessidade de todos nós, dentro das possibilidades, obedecermos às normas de distanciamento social. Respeitar as orientações dos especialistas é exercer cidadania, uma vez que o cidadão também se compromete com o outro, com a vida do outro e com os direitos de outros. Mas, aqui, o discurso da liberdade serve a propósitos individuais:  “sou livre e vou me aglomerar”, “não vou usar máscara”, um equívoco total.

Outro ponto que merece atenção nesta abordagem é de como o estatuto de contribuinte servirá de argumento para construção de um discurso de cidadania. O problema dessa narrativa é que quando esses indivíduos falam sobre cidadania ou em nome dela, fica exposto um entendimento muito peculiar sobre o que é ser cidadão. Quase sempre, o discurso não é evocado no sentido universal, pelo contrário, ele é evocado em nome de cidadãos que podem pagar. Assim, essa lógica reverberou na fala da mulher que contestou e agrediu o fiscal, “nós pagamos seu salário”, de fato, todos nós contribuintes somos os financiadores dos serviços públicos, mas temos que ser também conscientes de nosso papel enquanto cidadãos para que os nossos direitos e dos demais sejam preservados.

[1] Bairro de classe média do Rio de Janeiro.

[2] O historiador José Murilo de Carvalho, em um artigo denominado, Brasileiro: cidadão? Expôs o caminho da construção de uma cidadania brasileira precarizada.

[3] O autor analisa a luta pelos direitos na Inglaterra na obra: Cidadania, classe social e status.

Marusa Silva

Marusa Silva

Doutora em Sociologia Política, pesquisadora e autora de livros e artigos sobre desigualdade de gênero e integrante do Atelier de estudos de gênero da Universidade Estadual do Norte Fluminense – RJ

6 Comentários
  • Avatar
    Maurício
    Publicado em 15:06h, 08 julho Responder

    Texto que cabe muitas reflexões… Parabéns, Dra. Marusa!
    Na realidade, para mim, tudo passa pela precarização, se é que se pode dizer assim, do caráter e da empatia do ser humano, principalmente, nos últimos tempos, do “ser humano” brasileiro!

    • Marusa Silva
      Marusa Silva
      Publicado em 19:29h, 22 julho Responder

      Maurício, você está correto, tudo passa pela precarização. A nossa cidadania foi constituída de forma precarizada e isso nos ajuda a problematizar situações como essas. Obrigada!!!

  • Avatar
    Marcelle Almeida
    Publicado em 18:48h, 08 julho Responder

    Perfeito texto, Marusa!

    É muito bom, sempre que for possível, ampliar os olhares para sairmos dessa ‘cegueira congênita’ em que vivemos, e que levam alguns a ignorar fatos como estes.
    Digo congênita porque, desde o nascimento, somos formatados para pensar em uma sociedade brasileira livre de racismos, afetuosa e que abraça a todos. Contudo, pela nossa história, vemos que não é bem assim que a banda tem tocado!
    Não podemos mais relativizar este tipo de comportamento, nem esconder atrás de desculpas precarizadas do tipo: “mas, eles estavam alcoolizados”, Devemos, como cidadãos, problematizar e trazer à tona estes debates tão tristes, mas também, tão necessários aos nossos tempos!
    Obrigada!

    • Marusa Silva
      Marusa Silva
      Publicado em 19:25h, 22 julho Responder

      Marcelle, problematizar sempre!
      Beijos!

  • Avatar
    Patrick Pereira
    Publicado em 11:55h, 12 julho Responder

    Professora Marusa, como vai?

    Não é nenhuma surpresa que a senhora escreve muito bem, posto que tenho dois livros autografados pela senhora e só tenho comentários excelentes a fazer sobre as leituras, porém faço questão de parabenizá-la especificamente por este texto! Não conhecia o Generalizando e já salvei o blog nos meus favoritos. Ficarei atento aos próximos textos, que certamente serão de grande aprendizado e possilitarão boas reflexões como aconteceu com esse aqui.

    Tenho orgulho de ter sido seu aluno. Um abraço e parabéns pelo projeto!

    • Marusa Silva
      Marusa Silva
      Publicado em 19:24h, 22 julho Responder

      Oi, Patrick! Que bom ver você por aqui! Obrigada pelo apoio! Fique atento aos próximos textos. Grande abraço.

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