O horror ao feminino no Brasil - Generalizando
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O horror ao feminino no Brasil

O horror ao feminino no Brasil

O Brasil é um país marcado pela diversidade, isso é um fato. Essa diversidade remete ao nosso processo de colonização, quando matrizes culturais distintas se encontraram e passaram a experienciar relações tensas e intensas. Essa marca na nossa sociedade inspirou inúmeras narrativas sobre o nosso país, muitas delas dando conta da nossa tolerância com a pluralidade.

No entanto, parece que narrativas como a mencionada acima não se sustentam em pé diante de um histórico de violência, ódio, preconceito e segregação que milhares de pessoas vivenciaram e/ou vivenciam no Brasil.

Na última sexta-feira (09/07), Roberta da Silva, mulher trans faleceu depois de ser vítima de transfobia. No dia 24 de junho ela teve 40% do corpo queimado por um adolescente de 17 anos, que jogou álcool e ateou fogo enquanto ela dormia na rua da capital de Pernambuco. No estado, só no último mês, foram registrados quatro assassinatos de mulheres trans. Em todo o país foram 80 casos, só no primeiro semestre de 2021, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

No último domingo (11/07), imagens divulgadas pela influencer Pamella Holanda mostraram uma série de agressões que ela sofreu do ex-marido, conhecido como DJ Ivis. As agressões aconteceram na frente da filha do casal de apenas 9 meses, da mãe de Pamella e de um homem, identificado como Charles. As imagens chocam pela violência e covardia. Também chama atenção o fato das agressões terem sido presenciadas por 2 pessoas que não interferiram em nenhum momento.

Infelizmente, o que aconteceu com Roberta e Pamella ocorre todos os dias. O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo (Antra, 2020), ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídio (ONU, 2020) e vem apresentando alta nos índices de violência doméstica durante a pandemia. Um cenário que nos faz duvidar da narrativa de povo acolhedor e do país sem preconceito.

Existe um fator determinante para a análise de casos como os citados anteriormente, a misoginia. A nossa sociedade é atravessada pelo horror ao feminino. Os corpos das mulheres, aqui compreendendo todas as formas de ser mulher, são agredidos, estuprados, violentados, queimados e humilhados, uma forma de demonstração muito clara do desprezo que se tem pelas mulheres.

Esse desprezo pelo feminino está presente há muito tempo na nossa sociedade e com boa vontade podemos enxergá-lo nos mais diversos âmbitos sociais. No estado, no direito, na política, nas relações familiares, no mercado de trabalho, dentre outros. Basta olhar para ver a misoginia presente.

Se em uma sociedade misógina todas as mulheres estão sujeitas a sofrer as mais variadas formas de violência, se faz importante sinalizar que alguns desses corpos possuem marcadores que os tornam ainda mais vulneráveis, como é o caso das mulheres pretas, pobres e trans. O código criminal de 1830 já trazia em seu bojo a compreensão de que alguns corpos femininos não mereciam a proteção do Estado. O artigo 268 previa a pena de um a seis anos de prisão para aqueles que cometessem estupro em “mulher virgem ou não, mas honesta”. O que essa categoria “honesta” abarcava? As mulheres pobres e pretas, eram obrigadas a trabalhar em funções precarizadas como vendedoras de quitutes, empregadas domésticas e prostitutas. Estavam sujeitas a violência sexual nas ruas e, como sinalizam as pesquisas[1], não eram consideradas “honestas”. Elas eram as “mulheres públicas” das quais nos fala Perrot[2], não mereciam nenhum tipo de credibilidade.

Os avanços legislativos aconteceram, mas ainda hoje a categoria “honesta” é mobilizada pela sociedade para julgar, culpabilizar, humilhar e desacreditar milhares de mulheres vítimas do machismo, da transfobia e  da violência doméstica. Mas, existe um outro ponto nesse debate que não devemos furtar em comentar, a percepção social de que a mulher é posse do homem e que quando a violência acontece dentro do lar ninguém deve interferir. Afinal fomos socializados com o ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Não meter a colher significa que estamos sendo coniventes com a violência.

Em uma sociedade onde os homens, historicamente, possuem a primazia econômica, política, sexual a simbólica, o tom jocoso no tratamento dado às mulheres e as suas reivindicações demonstra o ódio ao feminino. Em 1871, um tradicional jornal do Pará publicava:

Uma mulher infiel é uma locomotiva que desencarrilha. Uma mulher coquete é uma das pragas de faraó. Uma mulher vaidosa é o martírio dos adoradores. A mulher é um manjar digno dos deuses quando não tempera o diabo. A mulher é finalmente um bocado cheio de espinhos. Infeliz daquele que o engole.[3]

 

Em julho de 2021, 24 horas após o vazamento dos vídeos que mostram o DJ Ivis agredindo sua ex-esposa, o artista ganhou mais de 235 mil seguidores no Instagram. Um escárnio à situação vivida pelas mulheres no Brasil.

O mesmo deboche e pouco caso da sociedade e das autoridades estão presentes nos casos de transfobia, como o que foi vítima Roberta. Apesar das inúmeras denúncias sobre o aumento desse tipo de violência, muito pouco tem sido feito para combater essa violência. No caso das mulheres trans, odeia-se o  feminino nelas e como nos ensina Bourdieu[4],  o masculino é o privilégio e aqueles que “abrem” mão de tal privilégio estão sujeitos a toda a sorte de preconceito e violência.

Com tudo isso fica difícil acreditar no mito de povo que acolhe a diversidade, ao contrário fica exposto o quanto o preconceito, a intolerância e a misoginia estão presentes na nossa sociedade. Até quando vamos conviver e tolerar situações como as de Roberta, Pamella e tantas outras que esfregam na nossa cara, todos os dias, como é perigoso ser mulher no Brasil.

[1] Para  maior aprofundamento no debate ver Escritos sobre Misoginia no Brasil. Altoé & Silva, 2020.

[2] PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: UNESP, 1998.

[3] O Liberal do Pará, 15 de fevereiro de 1871, p. 1.

[4] BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

Marusa Silva

Marusa Silva

Doutora em Sociologia Política, pesquisadora e autora de livros e artigos sobre desigualdade de gênero e integrante do Atelier de estudos de gênero da Universidade Estadual do Norte Fluminense – RJ

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