Como ficam os direitos das mulheres no Afeganistão sob o comando do Talibã?
“De todos os lados, as pedras voavam contra o poste, a maioria acertando o alvo. A mulher não gritou, mas logo se levantou entre a multidão um homem forte. Tinha encontrado uma pedra especialmente grande e angulosa, e jogou-a com toda a sua força, após ter mirado cuidadosamente o seu corpo. Acertou-a na barriga, com tanta força que o primeiro sangue desta tarde se mostrou através da burca. Foi o que fez a multidão exultar. Uma outra pedra do mesmo tamanho acertou o ombro da mulher. Provocou sangue e aplausos.” (James A. Michener, Caravanas. In.: SEIERSTAD, Asne. O Livreiro de Cabul. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Escolho iniciar o texto desta semana com um fragmento presente na obra “O livreiro de Cabul” da jornalista norueguesa Asne Seierstad. Uma mistura de romance e livro jornalístico ambientado em Cabul, capital do Afeganistão, durante o governo do Talibã.
A citação acima, dentre tantas outras presentes na obra, nos dá uma ideia do horror que o regime do Talibã significou para as mulheres. Linchamentos e condenações por meio de apedrejamento público era a pena aplicada às mulheres que eram acusadas de cometer adultério. Graves violações dos Direitos Humanos foram cometidas e não só as mulheres eram vítimas, mas sim toda a população. Talvez essa informação nos faça compreender o desespero das pessoas para sair do Afeganistão assim que o grupo fundamentalista islâmico retomou o poder. As cenas de indivíduos se agarrando aos aviões enquanto decolavam, exprime todo o medo que essa nova realidade causa na população.
O Talibã é um grupo fundamentalista e nacionalista islâmico que atua utilizando táticas de guerrilha. De orientação sunita[1], o grupo foi formado por ex-guerrilheiros em 1994. Durante o período que se estendeu entre 1996 e 2001, o grupo governou três quartos do território do Afeganistão até ser retirado do poder por uma coalizão militar internacional liderada pelos Estados Unidos da América.
Durante os cinco anos em que o Talibã governou o Afeganistão, as mulheres e outras minorias, bem como os defensores dos direitos humanos, tiveram sua liberdade cerceada e seus direitos desrespeitados. Governando a partir de uma interpretação própria e fundamentalista da Lei Islâmica, a Sharia[2], o novo governo trata as mulheres como não sujeitos.
Os anos em que o Talibã ficou no poder representaram um verdadeiro inferno para as mulheres. Elas foram proibidas de estudar, de trabalhar, de negociar com homens, para sair à rua necessitavam da companhia de um familiar do sexo masculino e eram obrigadas a usar o “longo véu”, a burca que cobre todo o corpo, inclusive o rosto das mulheres. Causando incômodo no caminhar e respirar.
A visão fica comprometida porque a tela que reveste a parte dos olhos não deixa as mulheres enxergarem com clareza o mundo a sua volta. Além disso elas são quentes, especialmente se levarmos em consideração o clima do país. Abafadas é possível sentir o cheiro do seu suor. Compridas demais se arrastam pelas ruas sujas fazendo com que o lixo se acumule na bainha e atrapalhe o caminhar. (SILVA, p.5, 2014)[3]
Além de todo o incômodo que a vestimenta traz à mulher, chama atenção a total ausência de autonomia e liberdade vivenciadas por elas nesse período. Elas não possuíam sequer o direito de escolher o que iriam vestir.
Os anos que se seguiram ao término do regime possibilitaram às mulheres e meninas afegãs terem acesso à escola, à universidade e ao mercado de trabalho. Destarte o fato da sociedade afegã ser considerada conservadora, sobretudo nas cidades interioranas e nas zonas rurais, as mulheres ocuparam espaços na esfera pública. Elas estão nas grandes empresas e conquistaram 27% do Parlamento. São ganhos consideráveis que agora, diante da chegada, novamente ao poder, do Talibã, podem se tornar uma lembrança do passado.
A liderança do grupo, que tomou novamente Cabul no domingo dia 15 de agosto, tem optado por um discurso moderado. Sinalizando para a comunidade internacional que os tempos são outros, que a liderança, mais jovem do que os líderes de 20 anos atrás, irão priorizar os direitos de todos, inclusive das mulheres, claro dentro da Lei Islâmica. Esse é o ponto frágil. Estar-se a falar de uma interpretação da Lei Islâmica, que ao considerar o histórico do grupo, fere os direitos fundamentais e a dignidade das mulheres.
Uma coisa é certa, as mulheres afegãs de hoje não são as mesmas de 20 anos atrás. Elas foram para a escola, entraram na universidade, construíram suas carreiras. Elas não podem ser deseducadas! Já existem relatos e notícias de mulheres indo às ruas para protestar e afirmar que não aceitarão retrocessos nos seus direitos. Um ato de extrema coragem.
Inspiradas por movimentos que defendem a igualdade de gênero e por lideranças como Malala Yousafzai, que foi vítima do Talibã por insistir em estudar, as mulheres afegãs estão conscientes de suas conquistas e receosas, para dizer o mínimo, de que o autoritarismo e a violência, historicamente empregados pelo grupo, obriguem-as a recuar.
Cabe ao mundo ficar de olhos bem abertos ao que se passa no Afeganistão e cobrar que o novo regime respeite a agenda de direitos humanos e da igualdade de gênero. Violações não podem ser aceitas ou naturalizadas, sob pena de nos transformarmos em cúmplices dessas violações.
[1] Sunita é uma vertente do islamismo.A maioria dos sunitas acredita que o nome deriva da palavra Suna (Sunna), que se refere aos preceitos estabelecidos no século VIII baseados nos ensinamentos de Maomé e dos quatro califas ortodoxos. Em uma divisão simplificada os sunitas seriam moderados enquanto os xiitas radicais. No entanto, essa simplificação se mostra frágil, uma vez que vários grupos radicais e terroristas afirmam ser de orientação sunita.
[2] Sharia é o sistema jurídico do Islã. Um conjunto de normas que deriva do Corão (livro sagrado), das falas e condutas do profeta Maomé. É entendida como a diretriz para a vida e que todo o muçulmano deveriam seguir. O código possui disposições para todas as esferas da vida.
[3] SILVA, Marusa. O Livreiro de Cabul à Luz da Teoria de Gênero. Perspectivas Online: humanidade e ciências sociais aplicadas, 2014.
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