Você ainda acredita na democracia racial?
Os tristes episódios recentes sobre a violência sofrida por pessoas negras dentro e fora do Brasil, têm trazido para o centro do debate a questão do racismo. Essa temática urgente de ser debatida ganha mais ou menos visibilidade a partir da exposição dos casos pela mídia. As duas realidades que chamaram atenção recentemente, o caso da violência policial contra negros nos Estados Unidos que levou à morte de George Floyd e o caso do menino Miguel no Brasil, fazem parte da realidade cotidiana de uma parcela significativa da população. Todos os dias homens, mulheres e crianças negras têm seus direitos violados pelo Estado e pela sociedade.
Existem algumas similitudes entre os dois cenários como o fato dos dois países terem sido colonizados pelos europeus e por terem vivenciado a experiência da escravidão. Esses elementos dizem muito sobre o racismo estrutural que está presente nos Estados Unidos da América e no Brasil.
Direcionando a reflexão para o caso brasileiro, vale lembrar que quando o Brasil precisou demonstrar para a comunidade internacional que estava no caminho do desenvolvimento, a cor da maior parte da população se tornou um grande obstáculo. O país recém republicano e mestiço lançou mão de artifícios como a “política de branqueamento” esperando com isso clarear a cor do povo brasileiro ao mesmo tempo que poderia ser reconhecido como um país de futuro. De fato, esta tentativa não surtiu o efeito esperado e foi preciso elaborar outra narrativa para acessar o reconhecimento internacional. Foi assim que a mestiçagem, DNA do povo brasileiro, passou a ser elogiada.
A ideia de que o brasileiro seria um povo afetuoso e capaz de lidar harmoniosamente com a diversidade inculcou na sociedade brasileira a crença em um mito, o da democracia racial. Com essa nova abordagem, passamos a crer na ausência de discriminações e de violências entre brancos e negros e em oportunidades iguais para todos.
Entretanto, o que se fez foi jogar um véu sobre as relações raciais no Brasil. Um discurso de aproximação e afeto que colabora para a invisibilidade de uma parte da nossa população e das violências e injustiças sofridas por ela. O que vemos acontecer dia após dia é o descaso com as mazelas vividas pelos negros no Brasil.
O triste caso do menino Miguel, que tinha apenas 5 anos é um exemplo de como as relações raciais no Brasil estão longe do terreno do afeto, do respeito e igualdade. Miguel era filho da empregada doméstica Mirtes Souza, uma mulher negra que estava trabalhando no contexto de pandemia, desrespeitando a recomendação do isolamento social, situação muito comum entre as domésticas do Brasil. De acordo com uma pesquisa feita em abril pelo Instituto Locomotiva, 45% dos empregadores de domésticas diaristas das classes A e B abriram mão do serviço dessas profissionais sem, no entanto, manter o pagamento das diárias. Ainda segundo o levantamento, outros 23% dos empregadores e empregadoras de diaristas e 39% dos patrões de mensalistas afirmaram que suas funcionárias continuam trabalhando mesmo durante o período de isolamento.
Mirtes estava entre essas mulheres que não tiveram o privilégio do isolamento e também como tantas outras precisam se virar para cuidar dos filhos. Miguel estava no trabalho da mãe e ficou no apartamento com a patroa enquanto Mirtes foi passear com o cachorro. A “decisão” de levar o filho pequeno para o trabalho faz parte de uma limitação de possibilidades. Mulheres que não podem contar com infraestrutura de cuidados, especialmente em um contexto onde escolas e creches permanecem fechadas.
Enquanto termino de escrever este texto me deparo com a notícia de uma patroa, na Bahia, que foi condenada por manter por 35 anos uma empregada doméstica em condições análogas à escravidão. Em troca de roupa, comida e moradia a empregada doméstica (que não teve o nome revelado) fazia todo o trabalho da casa. Interrogada a patroa disse que os laços de afeto entre elas justificavam a “escolha” pelo não registro e pagamento de salário da funcionária. O caso só foi descoberto por causa de denúncias anônimas.[1]
Este é o retrato da sociedade brasileira que não conseguiu romper com a estrutura escravocrata. Mulheres negras, empregadas domésticas, violadas em seus direitos. São os invisíveis que não “merecem” o cuidado e a atenção. Essas crianças negras assim como todo povo negro “sabem se virar”.
Esta é a percepção que está por trás do ato de Sari Corte Real, a patroa de Mirtes que deixou o menino Miguel sozinho no elevador e o desenrolar desta história foi a triste morte da criança. A empregadora de Mirtes foi presa em flagrante por homicídio culposo, pagou fiança de 20 mil reais e irá responder em liberdade.
Este cenário revela que a suavidade, o respeito e o afeto contemplado na narrativa de democracia racial é de fato um mito falacioso. Estamos longe de sermos solidários e justos, especialmente com aqueles que historicamente viveram processos de inúmeras violências. Em uma realidade em que o Estado faz a opção por uma necropolítica, produzindo mortes de negros em larga escala, não se problematiza essas violações. Por outro lado, diante de um caso de extremo horror como o de Miguel, ficamos com uma pergunta martelando na cabeça: e se fosse o filho da patroa?
[1] Disponível em: www.correio24hora.com.br/ www.g1.com.br
Marcelle
Publicado em 22:49h, 15 junhoUma bela aula de sociologia!
Ah, Jessé! Ah, Marusa!! Quanto sou grata por ter a oportunidade de ler vocês!
#póMelitaabreamente
Marcelle Almeida
Publicado em 10:11h, 17 junhoQue belo texto, uma aula de sociologia!
Ah, Marusa, Ah Jessé! Sou muito grata pela oportunidade de ler vocês!
Marusa Silva
Publicado em 19:29h, 22 julhoMarcelle, gratidão!
Angélica Anido Lira
Publicado em 11:06h, 15 agostoUm texto com abordagem clara e sem pieguismo. Demonstra a realidade cruel da sociedade em que vivemos, que ainda não conseguiu entender que não há diferença entre os seres humanos e que a cor da pele e a situação social ou econômica não dita a moralidade de ninguém. Ainda temos um caminho a percorrer em busca da democracia de fato. Por isso, discussões e debates como esses que a Dra Marusa aborda são tão relevantes para a sociedade. Parabéns.
Marusa Silva
Publicado em 11:41h, 21 agostoObrigada pela parceira, Angélica. De fato temos muito que avançar, mas juntos somos mais fortes!