Por que as sociedades sempre violentaram e mataram as mulheres?
A violência perpetrada contra as mulheres não é produto do contexto atual e muito menos uma peculiaridade da sociedade brasileira. As mulheres historicamente foram violentadas e mortas pelos homens e também pelo Estado. Para compreender como essas referências de violência se estruturam e se perpetuam precisamos atentar para algumas dinâmicas culturais e sociais. A primeira delas é entender como o gênero se torna um elemento de poder.
As sociedades organizam e distribuem os lugares sociais a partir das referências do sexo biológico, “determinando” assim os espaços permitidos às mulheres e aos homens. Dessa forma, a lógica de gênero se insere em uma lógica de poder, onde as mulheres representam a inferioridade ou o lado mais fraco.
Se fizermos um sobrevoo no tempo veremos que nas sociedades clássicas já existia um encaminhamento para esse estado de coisas, ou seja, para a desigualdade estabelecida a partir do sexo. Na Grécia Clássica a mulher era encerrada na OIKOS que se refere a uma unidade básica e hierarquizada daquela sociedade, onde o pai era a autoridade suprema dentro da casa e chefiava todas as esferas da vida particular. Assim, a OIKOS era oposto da Pólis, concebida como espaço público, das relações políticas e do debate.
Desse modo, a mulher grega não podia se ocupar do espaço da pólis, uma vez que não era considerada cidadã. Estava então, proibida de participar da esfera pública. Sua voz era silenciada. Aquelas que não aceitavam esse “destino” eram perseguidas e mortas. Exemplar é o caso de Hipátia, primeira matemática que se tem notícias na História e que foi brutalmente assassinada por uma multidão de cristãos.
Nós, enquanto sociedade partimos desses modelos de civilização (Grécia e Roma). A OIKOS grega ganhou novos contornos no Brasil Colônia, se reinventou e continuou violentando e silenciando as mulheres. O patriarcalismo ou o poder patriarcal, sobre o qual muito se fala, está intimamente ligado à violência contra a mulher. Transformando-as em coisa, objeto que pertence ao Senhor de Engenho, assim como os escravos, os filhos e agregados.
Com isso a lógica de poder a partir da desigualdade de gênero utilizou historicamente a violência como linguagem. Dessa maneira, as opressões se expressam, nos dizeres de Rita Segatto, a violência é o enunciado do poder porque define quem está no controle. E quem está no controle historicamente é o homem branco.
Não podemos perder de vista que a colonização foi extremamente violenta, não só pelo fato de tomar para si terras que já tinham dono, mas sobretudo por imprimir uma colonização das mentalidades como forma de arrefecer os ânimos daqueles que estavam sendo colonizados.
Com isso quero dizer que a nossa linguagem é, historicamente, a violência. Sobretudo a violência contra as minorias, as mulheres, os negros, os povos originários e a comunidade lgbtqi+.
Os dados apresentados pelo relatório da ONU Mulheres (2020) mostram que a América Latina é o terceiro lugar mais letal para uma mulher viver, excetuando os contextos de guerra (onde as mulheres são estupradas, tratadas como mercadoria e como descarrego das tensões dos homens que estão na frente de batalha. E tudo isso “legitimado” pelo Estado). O mesmo levantamento apresenta dados sobre o Brasil que ocupa o 5 lugar no ranking mundial de feminicídio. O que significa dizer que o Brasil é o 5 lugar mais perigoso do mundo para uma mulher. Mas,como alertei no início do texto, essa não é uma particularidade do Brasil. Existe um cinturão misógino ao redor do mundo.
Os especialistas afirmam que, no caso brasileiro, alguns avanços precisam ser celebrados como é a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. Avanços esses que são conquistas das lutas feministas. No entanto, como é possível observar a existência de lei não é suficiente para exterminar a violência contra a mulher. É preciso olhar essa violência explícita como a ponta de um iceberg, procurando desvendar os caminhos que levam uma mulher a, por exemplo, se manter em um relacionamento abusivo. Precisamos de uma abordagem decolonial sobre a violência de gênero, compreendendo os elementos interseccionais e as “tecnologias” utilizadas para manter privilégios sociais.
Como afirmava Beauvoir, os nossos direitos nunca estão garantidos. A cada avanço em direção da proteção dos direitos os mecanismos de opressão vão se movendo. O livro Backlaste antifeminista, da jornalista norte-americana Susan Faludi é um alerta para todas nós mulheres e minorias, mostrando como nossas lutas por emancipação são atacadas e menosprezadas.[1]
Assim, continuar lutando pela conquista e garantia dos direitos já conquistados não é uma opção para as mulheres e sim algo que se impõe diariamente. É preciso tratar as causas da violência. É preciso falar sobre a masculinidade tóxica que molda os agressores. Sim! Precisamos tratar os agressores! A maioria não nasce agressor, aprende a ser, aprende a menosprezar e odiar as mulheres. A maioria é ensinada a perceber as mulheres como objetos descartáveis.Tratar isso é fundamental!
Por outro lado, precisamos falar de emancipação e não apenas de empoderamento para que a verticalização do poder possa ser desconstruída. Uma lógica que é danosa para a garantia dos direitos iguais. Não podemos corroborar esse discurso de poder que está materializado na sociedade. Não podemos almejar o lugar do opressor e sim desejar subverter esse modelo de poder. Só assim deixaremos de matar mulheres e minorias sociais.
[1] No livro a jornalista faz uma abordagem a partir da sociedade americana, mas que pode ser dialogada com outras realidades sociais.
Angélica Lira
Publicado em 15:59h, 30 outubroLendo o texto só conseguia pensar: ? mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas!” ?