Cuidar dos filhos é trabalho!
O cuidado com os filhos e todo o trabalho que essa função exige, sobretudo das mulheres, nunca foi computado como trabalho de fato nas sociedades contemporâneas. Sustentado por um discurso cultural de que a criação dos filhos é um elemento “natural” na vida das mulheres, o tema foi invisibilizado nas agendas políticas, independentemente da orientação partidária.
A ausência desse tema também se fez sentir nas referências bibliográficas até o final do século XX que não tratavam da importância econômica do trabalho de cuidado para se viver em sociedade. Considerado, equivocadamente, como não gerador de bens e serviços, esse tipo de trabalho só passou a ter centralidade nos debates acadêmicos no decorrer do século vigente.
A economia feminista passou então a argumentar que, ainda que não seja uma atividade remunerada, a garantia de cuidados implica trabalho. Pois como define Kergoat[1], o trabalho de cuidado é uma “relação de serviço, apoio e assistência, remunerada ou não, que implica um sentimento de responsabilidade em relação à vida e ao bem-estar de outrem” (2016, p.17). Esse debate é um passo importante para dar visibilidade ao valor desse trabalho.
Apesar do longo histórico de marginalização, o trabalho de cuidado como pode ser observado, foi ganhando mais espaço na arena do debate público, performando algumas importantes mudanças que merecem maior observação e análise. O caso da nossa vizinha Argentina é um desses exemplos de uma virada de chave no que tange a percepção social sobre o trabalho de cuidar dos filhos.
O governo da Argentina apresentou, no último dia 20 de julho, o Programa Integral de Reconhecimento de Tempo de Serviço por Tarefas Assistenciais, o que permitirá que até 155 mil mulheres se aposentem contando como tempo de trabalho o período que ficaram cuidando da criação dos filhos. De acordo com a ANSES (Administração Nacional de Seguridade Social), responsável pelas políticas previdenciárias no país vizinho, essa alteração beneficiará também as argentinas que precisam largar o emprego para se dedicar exclusivamente aos cuidados maternos, assim como as mulheres com mais de 60 anos que ainda não tinham somado o tempo mínimo para se aposentar.
A mudança em curso na Argentina vai na direção de atender as demandas dos movimentos feministas que reivindicam, há muito, o reconhecimento do cuidado com os filhos como um trabalho. As feministas pioneiras, desde o século XIX, haviam denunciado as desigualdades no mercado de trabalho, o menor acesso das mulheres aos postos de chefia e/ou liderança e as persistentes diferenças salariais.
A mudança na legislação da Argentina, busca a reparação de uma desigualdade histórica, presente em boa parte das sociedades ao redor do mundo. Segundo levantamento da Casa Rosada aproximadamente 44% das mulheres com idade para se aposentar no país não conseguiram o benefício por não terem o número de anos trabalhados exigidos por lei e isso ocorria pelo fato de muitas delas terem ficado fora do mercado de trabalho em decorrência do compromisso de cuidar dos filhos.
O levantamento feito pelo governo argentino demonstra o cenário de desigualdade entre homens e mulheres quando se trata de inserção e manutenção no mercado de trabalho. Para aqueles que ainda tinham dúvidas, fica claro que as oportunidades não são as mesmas para eles e para elas.
As mulheres que vivenciam a maternidade se veem, em muitos casos, obrigadas a abandonar o trabalho formal para se dedicar aos cuidados exclusivos com os filhos. Essa realidade atinge, sobretudo, mulheres pobres e racializadas, uma vez que muitas delas criam seus filhos sozinhas e não contam com redes de apoio, como creches públicas em tempo integral. Um cenário que desnuda a profunda desigualdade social a que estão submetidas milhões de mulheres em todo o mundo.
Ações como a do governo argentino são importantes porque buscam formas de mitigar os efeitos da desigualdade que persiste na sociedade, obrigando muitas mulheres a se afastarem do mercado de trabalho formal após o nascimento de seus filhos. Da mesma forma, essa política chama atenção para a importância e o valor do trabalho de cuidado para a vida em sociedade. Que possamos continuar avançando, mesmo que a passos lentos.
[1] KERGOAT, Danielle. “O cuidado e a imbricação das relações sociais. IN.: ABREU, A.R., HIRATA, H., LOMBARD, M. R. (org). Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas internacionais, São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17-26.
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