“Ela é como se fosse da família!”: será? - Generalizando
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“Ela é como se fosse da família!”: será?

“Ela é como se fosse da família!”: será?

No último dia 27/04 se comemorou o dia da empregada doméstica. A data foi escolhida em homenagem a Santa Rita, considerada padroeira das domésticas. No entanto, não há muito o que se comemorar. Um trabalho que, historicamente, sofre com a desvalorização social e com a invisibilidade, que é envolto no discurso de amizade e afetividade entre patroas e empregadas e que está entre os mais afetados pelos efeitos da pandemia da covid-19.

A figura da empregada doméstica está presente em boa parte dos lares das famílias de classe média e média alta no nosso país. Diferente de outras realidades sociais, no Brasil nos acostumamos, desde os idos do processo de colonização, com a figura de mulheres servindo a comida, limpando a casa e cuidando das crianças.

Enquanto perdurou a escravidão esse trabalho foi desempenhado pelas mulheres escravizadas, após a abolição continuou sendo um nicho de ocupação para mulheres pobres e negras. Um trabalho que traz consigo marcas da subalternidade e da servidão presentes no trabalho escravo.

É fácil constatar o que está posto acima quando observamos, por exemplo, o ritmo lento da regulamentação dessa função no nosso país. Foi preciso muita luta de movimentos sociais, sindicais e feministas para que em 2013 a chamada PEC das Domésticas fosse promulgada, no entanto, foi só em 2015 que todos os direitos foram equiparados pela legislação aos direitos das outras categorias trabalhistas.

No entanto, a promulgação da lei não foi suficiente para transformar essa relação trabalhista, uma vez que o trabalho doméstico ainda apresenta baixos índices de regulamentação. Cenário que foi agudizado com a crise sanitária e econômica pela qual passamos.

Um estudo recente do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) analisando dados da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE, apontou para um percentual de apenas 25% de empregadas domésticas com carteira de trabalho assinada. Antes da crise sanitária, no quarto trimestre de 2019, o Brasil tinha 6,4 milhões de trabalhadores domésticos em atividade. No mesmo período do ano seguinte, esse número foi reduzido para 4,9 milhões, o que mostra o fechamento de 1,5 milhão de postos de trabalho, dos quais 92% são ocupados por mulheres, dessas, 65% são negras.

Mal pago, precarizado, com baixa regulamentação, o trabalho doméstico continua sendo a opção de renda para uma parte significativa das mulheres negras e pobres. No contexto da pandemia, muitas dessas trabalhadoras não puderam fazer o isolamento social, sendo obrigadas a arriscarem-se  durante o percurso para o trabalho.

Com as escolas e creches fechadas, muitas precisaram levar seus filhos para o trabalho. O extremo desse cenário pontuado acima pode ser exemplificado pela primeira morte por covid-19 no Estado do Rio de Janeiro de Dona Cleonice, empregada doméstica que contraiu a doença da patroa. E a morte do menino Miguel, filho de Mirtes Renata Souza, empregada doméstica do Recife.[1] Será que Cleonice e Mirtes eram tratadas como se fossem da família?

O que essa realidade nos apresenta é a história de um país de herança escravagista, que mantém, em certa medida, as relações de subalternidade, como as que se estabelecem no trabalho doméstico. Uma sociedade que reproduz um discurso que tende a suavizar a exploração e embaçar o nosso olhar quanto às violações sofridas por essa categoria. Com tudo isso, ainda não há muito o que se comemorar no dia dedicado a essas trabalhadoras.

[1] O caso do menino Miguel ganhou repercussão nacional. Enquanto a mãe, empregada doméstica, foi passear com o cachorro da patroa, o menino ficou sob o cuidado da empregadora e acabou falecendo por ter caído do 9 andar.

Marusa Silva

Marusa Silva

Doutora em Sociologia Política, pesquisadora e autora de livros e artigos sobre desigualdade de gênero e integrante do Atelier de estudos de gênero da Universidade Estadual do Norte Fluminense – RJ

1 Comentário
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    Marcelle Almeida
    Publicado em 20:18h, 29 abril Responder

    Tema muito sofrido, e mais ainda, saber que estas condições ainda estão longe de acabar.
    Mas vamos firmes, tirando esse véu da hipocrisia, do preconceito velado e assim, conseguiremos um dia, condições melhores e mais igualitárias, onde todos sejam tratados com dignidade, humanidade e respeito.

    Obrigada por nos proporcionar estas reflexões.

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