O caso Mariana Ferrer: Reflexões sobre violência estrutural e institucional
A semana do dia 02 de novembro de 2020 não foi marcada somente pelo feriado de finados, num triste cenário de morte em decorrência da pandemia pela COVID-19, mas por mais uma “sentença de morte”: a da liberdade da mulher ao seu próprio corpo.
O dia 03 de novembro foi marcado pela repercussão de trechos da audiência do processo criminal envolvendo a blogueira e promoter Mariana Ferrer e o empresário André Camargo de Aranha, denunciado pelo Ministério Público como autor do crime de estupro de vulnerável, ocorrido em 2018, num espaço de eventos.
Nossa intenção aqui não é escrever sobre o processo penal, nem mesmo sobre a tipificação do crime de estupro, até porque qualquer comentário acerca de um processo não lido e analisado, do qual não se conhece as provas, seria leviano.
Independentemente de qualquer recorte na gravação da audiência, o que chamou atenção e mobilizou as redes sociais e a grande mídia foi a atuação do advogado de defesa do réu e a omissão dos membros do Judiciário e do Ministério Público, diante de tantas ofensas perpetradas contra a vítima. É isso mesmo: contra a suposta vítima!
O vídeo que viralizou nas redes sociais e nos telejornais, mostra que durante a audiência, o advogado de defesa apresenta fotos da vítima extraídas das suas redes sociais e de uma página de um fotógrafo, no qual a insulta, com comentários ofensivos, decorrentes das suas poses sensuais, a que ele chamou de “posições ginecológicas”, além de menosprezá-la por seu trabalho e supostas dívidas.
A estratégia da defesa do acusado ratifica o preconceito estrutural e socialmente enraizado, decorrente de uma sociedade patriarcal, que vê na mulher um objeto de dominação masculina, encarcerado em padrões culturais de comportamento, que incluem desde a sua função primordial de procriar, sob a maquiagem da “beleza da maternidade”. Joan Scott, ao tratar da Constituição da Segunda República, in Cidadã Paradoxal: as feministas francesas e os direitos dos homens, esclarece que:
A família, assim como a propriedade eram mencionadas como “direitos sagrados”, nos debates sobre a ordem pública, ocorridos em 25 de julho de 1848. Nestes, a maternidade nem mesmo era cogitada, porque se assumia como uma função natural, algo automático, evidente, recebido, uma dádiva. A paternidade, entretanto, era discutida como um direito. (…)
Ao insistir que os “direitos” à família e à propriedade pertenciam ao pai, os legisladores relegavam a contribuição materna a um imperativo biológico e a uma obrigação social: afirmavam que as mulheres “deviam” filhos aos maridos e à sociedade, e “deviam” cuidados maternos a seus filhos. Eram esses os deveres que tinham de respeitar em troca do cuidado e da proteção que recebiam dos maridos na condição de dependerem deles e de a eles pertencerem. (SCOTT, 2002, p.115-116.)
A reflexão sobre o comportamento social esperado da mulher nos remete à educação da mulher à luz do livro Emílio ou da Educação, de Rousseau, que dedica um capítulo para dispor sobre a educação para Sofia.
Segundo Rousseau, homens em mulheres têm em comum a espécie humana, mas o sexo os diferencia, assim, na relação afetiva, a mulher deve se subjugar ao homem, até porque sua fragilidade a faz depender do ser ativo, forte e detentor da razão. A mulher deve ter seus desejos contidos e como não tem razão, será o pudor o responsável por esta contenção. Para Rousseau:
(…) o mais forte aparentemente senhor, depende na realidade do mais fraco; e isso não em virtude de uma frívola galanteria, nem de uma orgulhosa generosidade do protetor, e sim em consequência de uma lei invariável da natureza que dando à mulher maior facilidade de excitar os desejos do homem que a este a de satisfazê-los, faz depender o homem, apesar de tudo, da boa vontade da mulher e o leva a procurar por sua vez agradar-lhe para conseguir que ela consinta em deixá-lo ser o mais forte. Então o que há de mais doce para o homem em sua vitória está em duvidar se é fraqueza que cede a força ou se a vontade que se rende à malícia da mulher, que deixa sempre a dúvida em ambos (ROUSSEAU, 1999, p. 426).
E, assim, Rousseau vai descrevendo como Sofia, a mulher ideal para Emílio, deve ser educada e preparada para a vida familiar e, lógico, para a maternidade e os afazeres do lar, afinal, a mulher foi criada para servir ao homem.
Há que se ressaltar, também, que a mulher deve ser naturalmente “coquete”, ou seja, agradável ao homem, naturalmente talentosa, até porque as mulheres preferem as linhas e agulhas à leitura, segundo a visão rousseauniana.
Agora, pensemos: Como imaginar que uma jovem e bela mulher, que posa para fotos sensualmente, que trabalha na noite, com eventos, não iria topar umas horas de sexo com um empresário bem sucedido? Por outro ângulo, reflitamos: O que levaria um empresário bem sucedido a drogar e violentar uma jovem moça virgem, se havia várias outras mulheres experientes à sua inteira disposição?
Isso é uma construção misógina, intrinsicamente enraizada na sociedade machista e patriarcal por séculos, por isso importante refletirmos sobre a educação da mulher, escrita por Rousseau em pleno Século XVIII.
Num cenário de violência sexual, em que a vítima está fragilizada, revitimizá-la é uma estratégia cruel, mas comumente utilizada nos tribunais, associada, ainda, na legítima defesa da honra, ao comportamento dito como desviante do padrão esperado pela mulher socialmente construída.
Bourdieu (2011), explica a corporificação da dominação masculina, que fazem vítimas tanto o homem quanto a mulher, essa que ao mesmo tempo em que é sujeito de dominação desse processo, vive essa dominação simbólica. E essa força masculina existente “legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada.” (BOURDIEU, 2011, p. 33).
Na visão bourdieuniana, há uma incorporação social da dominação, construída a partir de uma visão antropológica, instituindo-se diferenças entre homem e mulher decorrentes de suas características físicas, sendo o corpo masculino o símbolo da virilidade e o da mulher, da sexualidade, da reprodução biológica.
Assim, ao mostrar fotos da suposta vítima com roupas e poses sensuais, o advogado de defesa busca descaracterizar a violência sexual, sob o pretexto de que o comportamento daquela jovem mulher constituiria uma espécie de “consentimento tácito” para a prática de relações sexuais.
A discussão do caso não pode se ater ao tipo penal do estupro e às especificidades do processo penal, que tem como um de seus princípios basilares o “in dubio pro reo”, mas dela se extrai que a violência contra a mulher também é institucionalizada, quando perpetrada por agentes públicos e aparelhos estatais, que deveriam garantir direitos da mulher vítima de violência, a partir de um tratamento humanizado, reparador de danos, mas, ao contrário, revitimiza a pessoa violentada, fragilizando-a ainda mais e reforçando a misoginia histórica e socialmente construída.
Referências:
BOURDIEU. Pierre. A Dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kühner. 10ª Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
ROUSSEAU. Jean Jacques. Emílio ou da Educação. Tradução: Roberto Leal Ferreira. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes. 1999.
SCOTT. Joan Wallach. A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem. Tradução de Élvio Antônio Funck. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2002.
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