O Papel das Mulheres na Ditadura Argentina: restituindo memórias - Generalizando
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O Papel das Mulheres na Ditadura Argentina: restituindo memórias

O Papel das Mulheres na Ditadura Argentina: restituindo memórias

Entre 1976 e 1983, a sociedade argentina foi vítima de sombrios anos de uma Ditadura Militar engendrada pelos três ramos das Forças Armadas. Dentro desse contexto, grupos familiares inteiros foram despedaçados por conta de uma repressão clandestina empreendida pelo próprio Estado Militar, que resultou no desaparecimento de cerca de trinta mil argentinos, dos quais cerca de quinhentos eram crianças. Isto é, semear o terror havia se tornado um plano sistemático e institucional de Estado. Dentre as práticas terroristas empreendidas por esse regime, merece especial menção o sequestro de crianças e recém-nascidos, filhos de presos e desaparecidos políticos, que eram apropriados por seus algozes como espólios de guerra.

Inserido na lógica da guerra contrarrevolucionária e vinculado ao maior estágio de uma dinâmica do Terrorismo de Estado (TDE), o sequestro e a tortura de crianças serviam a objetivos de: i) interrogar aquelas que já tivessem algum tipo de discernimento, buscando extrair alguma informação valiosa; ii) quebrar os silêncios dos pais a partir de chantagens e ameaças a seus filhos, bem também a partir da tortura ou até da morte; iii) beneficiar os comandos do regime com a apropriação e o apagamento identitário dessas crianças; iv) educar os menores com uma ideologia conservadora contrária à dos pais, inculcando neles “os sagrados valores civilizacionais do ‘Ocidente cristão e democrático’” (PADRÓS, 2007, pp. 144-146). Um dos exemplos que demonstram a institucionalidade dessas práticas foi um manual denominado Intrucciones sobre procedimiento a seguir com menores de edad, hijos de dirigentes politicos o gremiales, cuando sus progenitores se encuentran detenidos o desaparecidos, em que havia instruções formais para a doação de menores raptados de até quatro anos de idade para famílias ligadas à ideologia militar.

O sequestro de crianças argentinas existia em duas modalidades: a apropriação direta de crianças sequestradas já crescidas ou daquelas que nasciam nos mais de 600 centros clandestinos de detenção e tortura, mas principalmente na Escuela de Mecanica de la Armada (ESMA). Nesse sentido, nos dois tipos, para garantir o apagamento completo de qualquer vestígio identitário dessas crianças e desagregar seus círculos familiares, em virtude da suposição de que o comunismo seria transpassado biologicamente, o regime ditatorial-militar contava com uma rede de recursos e profissionais capazes de encobrir esses raptos, transformando-os em adoções forjadas por meio da falsificação de fatos, dados, documentos e datas (PADRÓS, 2007, p. 146). Dessa forma, ao impedir a reprodução social e a sobrevivência dessas famílias, o regime podia, assim, sacramentar suas vitórias contra a “subversão” e “instaurar a plena democracia”, como salientado nos primeiros discursos presidenciais do ditador Jorge Rafael Videla (1976-1981). Assim, as mulheres grávidas em situação de cárcere, enquanto geradoras da vida, acabam por passar por um duplo sofrimento oriundo tanto da própria tortura quanto do afastamento de seus filhos.

Com o intuito de expressar a magnitude da perversidade contida nessas apropriações, Padrós (2007; 2012) tece a noção de que essas crianças faziam parte de um “botim de guerra”, sendo consideradas também “troféus da ‘guerra interna’” (2007, p. 147). De forma conceitual, inúmeros manuais voltados às questões militares definem o “botim de guerra” como bens materiais encontrados e/ou apreendidos em campos de batalha. Nessa direção, partindo dessa definição, o autor a uniu ao sequestro de crianças no contexto ditatorial argentino no sentido de serem valorizadas pelos militares por conta de cumprirem um duplo objetivo nessa “guerra contra a subversão revolucionária”: ao serem retiradas de um “contexto subversivo” de seus pais, elas serviriam para apagar qualquer vestígio hereditário do “inimigo interno” (PADRÓS, 2007, p. 143) e, por serem consideradas intelectualmente espertas e saudáveis fisicamente, elas, com uma educação adequada aos moldes militares, poderiam ser grandes difusoras da ideologia contrarrevolucionária (PADRÓS, 2007, p. 147; PADRÓS, 2012).

Em meio a esse contexto de extrema violência, a sociedade civil argentina se organizou em prol da restauração da democracia. Nesse sentido, uma importante representação desse sentimento popular de insatisfação foi a Plaza de Mayo, que, por meio da tradição histórica, se transformou em um grande símbolo da contestação antiditatorial na época. Os familiares dos desaparecidos, com um destaque para as mães e as avós, protestavam nessa localidade buscando descobrir os paradeiros de seus filhos e netos, além de reivindicarem as suas verdadeiras identidades e memórias. Mesmo sendo menosprezadas pelos militares, essas mulheres perseveraram em sua luta contra o esquecimento e fundaram a associação Abuelas de Plaza de Mayo, um importante organismo civil que existe até os dias de hoje.

A partir da iniciativa das Avós, por intermédio de um trabalho incansável de catalogação das crianças sequestradas e da criação de um banco genético dos familiares dos desaparecidos políticos, foi possível, até agora, a descoberta de 130 das 500 crianças raptadas, que tiveram suas memórias e identidades sociais plenamente restituídas. Nessa direção, partindo dos resultados, vale destacar a atuação da organização em não somente restituir identidades pessoais, mas garantir a possibilidade de reaver e reescrever o passado nacional da Argentina, por intermédio da concessão da verdade histórica.

Sendo um importante órgão em defesa dos Direitos Humanos, além de contribuir para a restituição de memórias, as Abuelas também exigem punições severas aos torturadores e sequestradores da ditadura. Sendo assim, a atuação política das Abuelas de Plaza de Mayo contribui para diariamente tentar dar um fim ao reacionarismo antidemocrático na Argentina, uma vez que parte delas a afirmação contra o esquecimento e contra o autoritarismo que perdura até a atualidade no contexto latino-americano.

 

Referências

 

PADRÓS, Enrique Serra. A Guerra Contra as Crianças: práticas de seqüestro, desaparecimento e apropriação de identidade no século XX – “butim de guerra” no cone sul da segurança nacional. In: Encontro Estadual de História, 6., 2012, Rio Grande. Anais eletrônicos. Rio Grande: Universidade Federal do Rio Grande, 2012. Disponível em: <http://www.eeh2012.anpuh-rs.org.br/resources/anais/18/1345851002_ARQUIVO_TextoEnriquePadrosAGUERRACONTRAASCRIANCAS_1_.pdf>. Acesso em: 01 mai. 2021.

 

PADRÓS, Enrique Serra. “Botim de guerra”: desaparecimento e apropriação de crianças durante os regimes civil-militares platinos. Métis, v. 6, n. 11, jan./jun. 2007. Disponível em: <https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/173326/000603423.pdf?sequence=1>. Acesso em: 03 mai. 2021.

Lucas Barroso Rego

Lucas Barroso Rego

Lucas Barroso Rego é bacharelando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e licenciando em História pela Universidade Candido Mendes (UCAM). Possui experiência com ênfase no ensino e pesquisa de História do Brasil e de contemporaneidades. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8481113958603388. Contato: [email protected]

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