O que é dignidade menstrual?
Vivemos em uma sociedade desigual, parece que esse é um ponto pacífico para a maioria das pessoas. Sabemos por meio de canais de informação, de pesquisas acadêmicas, da experiência do dia a dia e da observação que, uma parcela significativa de indivíduos vive em situação de vulnerabilidade social.
No entanto, dentro de um vasto e complexo conjunto de pobreza existem alguns pontos cegos. A dignidade menstrual é um deles. É muito provável que em boa parte dos debates sobre desigualdade que você presenciou, o assunto em questão não tenha sido sequer mencionado ou, em casos muito particulares, abordado de maneira tímida. Esse silenciamento é simbólico.
Quando não falamos sobre um problema ele passa a não existir. A pergunta que deve ser feita em seguida é: para quem ele não existe? Perceberemos que ele não existe para o Estado, para a escola, para o mercado de trabalho e também, para a sociedade. Esse silêncio sobre o direito à dignidade menstrual resulta em violação, em violência e na inércia da sociedade e do poder público de agir para reverter essa situação.
A menstruação é parte vital do ciclo produtivo, é fisiológico e vivenciada por aproximadamente metade da população. Então, porque se torna um tabu para a sociedade? Por que essa experiência tão “comum” na vida dos corpos que menstruam, não é objeto de atenção do poder público e nem das ações dirigidas ao combate ou a diminuição da pobreza?
Para responder a esse questionamento é preciso remexer as bases culturais que forjaram muitas sociedades, inclusive a brasileira. A cultura que enxerga esses corpos como “plásticos”, sempre limpos, depilados, magros e prontos à utilização. A mesma lógica que relaciona a menstruação como sujeira, impureza e motivo de vergonha. A internalização dessa percepção silencia a pobreza menstrual.
Esse é um debate que só pode ser travado no campo da interseccionalidade. Afinal, os corpos que menstruam sem dignidade são marcados, além do gênero, pela cor e pela classe social. São as mulheres periféricas e negras as maiores vítimas dessa violação.
No Brasil, 26% das meninas com idade entre 15 e 17 anos não têm acesso a absorventes. Entre as meninas de 12 e 14 anos 22% afirmam não ter acesso a produtos confiáveis.[1] De acordo com a ONU Mulheres 12% das mulheres do mundo não possuem dignidade menstrual, sobretudo as que vivem em situação de rua e as presidiárias. Outro dado alarmante é que 1,25 milhões de meninas e mulheres no mundo não tem acesso a banheiros seguros e privados e 526 milhões sequer têm acesso a banheiros onde vivem.
Esse retrato da desigualdade, que afeta de maneira muito específica meninas e mulheres em todo o mundo, coloca-as em situação de extrema fragilidade e perigo. Essas meninas, mulheres e esses corpos lançam mão de práticas que colocam em risco sua saúde, como por exemplo a utilização de folhas de jornal, sacolas plásticas, panos ou meias velhas e miolo de pão para conter o fluxo menstrual. O que leva a inúmeras infecções e demais problemas de saúde.
O custo médio de uma brasileira durante o ciclo menstrual no Brasil é de R$ 7,00. Um custo muito alto para aquelas que vivem em situação de vulnerabilidade social e que leva, por exemplo, a ausência nas aulas durante o período de duração do ciclo. Em uma escola pública de Brasília, classificada como de classe D pelo Ministério da Educação, ou seja, uma escola que possui alunos em situação de fragilidade social, a diretora percebeu que as meninas faltavam as aulas durante cinco dias corridos por mês, o motivo? A pobreza menstrual.[2]
A câmara de vereadores do Rio de Janeiro, aprovou a lei n°6603 de 3 de junho de 2019 que prevê a distribuição gratuita de absorvente nas escolas municipais, depois de calcularem que estudantes perdem até 45 dias de aula durante o ano, por não terem acesso a absorventes. O projeto não foi sancionado pelo prefeito até a presente data.
Em Brasília tramitam dois projetos de lei na câmara dos deputados que consideram a pobreza menstrual como fator determinante para evasão escolar de estudantes em situação de vulnerabilidade social. Em setembro de 2019 a deputada Marília Arraes (PT-PE) elaborou o projeto de lei n°4968/2019 que aguarda parecer da Comissão de Educação. Outra proposta é da deputada Tábata Amaral (PDT-SP), apresentada em março de 2020 sobre a distribuição de absorventes em locais públicos e que causou reações negativas de outros parlamentares, colaborando assim para o silenciamento sobre a questão.
Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu que o direito das mulheres à higiene menstrual é uma questão de saúde pública e de direitos humanos. Mas, o que deveria ser um direito passa a ser, em muitos casos, um luxo. Por isso, é preciso falar de dignidade menstrual e compreendê-la como direito que deve ser garantido para todos os corpos que menstruam, exigindo políticas públicas que garantam dignidade para todas, todes e todos.
[1] Pesquisa realizada pela Sempre Livre com 9.062 brasileiras de 12 a 25 anos em 2018.
[2] Disponível em: http.: ponte.org/pobreza-menstrual. Acessado em: 27/08/2020.
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