Depois da abolição… a escravidão contemporânea - Generalizando
971
post-template-default,single,single-post,postid-971,single-format-standard,bridge-core-2.0.9,ajax_fade,page_not_loaded,,qode-title-hidden,qode_grid_1300,qode-theme-ver-19.6,qode-theme-bridge,disabled_footer_top,wpb-js-composer js-comp-ver-6.1,vc_responsive

Depois da abolição… a escravidão contemporânea

Depois da abolição… a escravidão contemporânea

“Trabalhei numa casa que a geladeira tinha cadeado. Era a patroa que colocava a nossa comida. Eu acho um absurdo! Já pensou um calor danado e você não pode beber uma água gelada?” (Vera, empregada doméstica, Campos dos Goytacazes)

 

Começo o texto dessa semana com a citação de Vera[1], empregada doméstica de Campos dos Goytacazes/RJ que foi entrevistada por mim para a minha pesquisa de dissertação. O relato de Vera, apesar de assombroso, é atual e mais comum do que podemos imaginar.

Comemoramos hoje, dia 13 de maio, 133 anos da abolição da escravatura no Brasil e apesar das conquistas trabalhistas do último século, convivemos com formas de trabalho análogas à escravidão.

No artigo 4 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) encontramos a proibição do trabalho escravo: “Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos”[2], entretanto dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) dão conta da existência de 40 milhões de pessoas vítimas da escravidão contemporânea no mundo.[3]

Só no Brasil, 55.004 pessoas foram resgatas de situação análoga a escravidão entre 1995 e junho de 2020, segundo dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho. O que demonstra a urgência do estabelecimento de medidas para o enfrentamento dessa situação.

A escravidão é um processo de extrema violência que retira do indivíduo sua dignidade. A escravidão contemporânea é toda a forma de trabalho que viola direitos fundamentais como a liberdade, que não estabelece jornada de trabalho definida por lei e que impõe ao trabalhador uma situação de sofrimento.

Esse tipo de prática permanece porque existe uma extrema desigualdade social que coloca pessoas, socialmente e economicamente vulneráveis, como as principais vítimas dessa forma de trabalho. Segundo dados da OIT, o perfil encontrado é de mulheres e meninas que são forçadas a se prostituírem, migrantes e indígenas, tendo como campo majoritário de atuação o trabalho doméstico, a construção civil e a agricultura.

A herança escravocrata no Brasil deu margem para a manutenção da desigualdade imposta no sistema escravista, marcado pela racialização. Afinal, os escravizados eram homens, mulheres e crianças negras. Apesar dessas pessoas terem sido consideradas juridicamente iguais após a abolição, na prática foram impedidas de acessar os lugares mais valorizados da sociedade. Não possuíam capitais econômico e nem intelectual e o Estado se furtou de promover políticas para a inserção dessa parcela na sociedade formal.

As marcas desse processo são visíveis. A população negra ainda vive em condições de desvantagem socioeconômica em relação aos brancos. Das 13,5 milhões de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza no Brasil, 75% são pretos e pardos (IBGE, 2019). E, estando em situação de extrema pobreza, essas pessoas são alvos fáceis para os que veem vantagens na escravidão contemporânea.

Mas, essa prática também é alimentada por uma desigualdade global que divide o mundo entre o centro e a periferia do capitalismo. Assim, os países mais pobres acabam se tornando fornecedores de mão de obra para os mais ricos, e em muitos casos, essas pessoas se tornam vítimas da esravidão contemporânea.

O dia de 13 de maio é um marco simbólico para a História do Brasil e deve ser também produto para a reflexão e para o combate da desigualdade que se perpetua. É preciso questionar a lógica capitalista que visa puramente o lucro, não se importando com pessoas e nem com comunidades inteiras. Caminhamos muito mas, não completamos o caminho. Enquanto trabalhadores como Vera receberem tratamento discriminatório e indigno  teremos a certeza de que muito ainda precisa ser feito.

[1]Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.

[2] Disponível em: https.://www.gov.br/mdh

[3] Disponível em: https.://www.oit.org

Marusa Silva

Marusa Silva

Doutora em Sociologia Política, pesquisadora e autora de livros e artigos sobre desigualdade de gênero e integrante do Atelier de estudos de gênero da Universidade Estadual do Norte Fluminense – RJ

Ainda não há comentários, seja o primeiro

Publicar um comentário