Memórias Femininas sobre a Ditadura no Brasil - Generalizando
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Memórias Femininas sobre a Ditadura no Brasil

Memórias Femininas sobre a Ditadura no Brasil

Este texto foi produzido a partir de depoimentos concedidos ao acervo “Marcas da Memória: história oral da anistia no Brasil”, projeto de pesquisa realizado pelo Núcleo de História Oral do Laboratório de Estudos do Tempo Presente do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/UFRJ), em parceria com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Utiliza-se também o documentário “Memórias femininas da luta contra a ditadura militar” (2015) que analisa algumas experiências femininas de resistência ao regime civil-ditatorial brasileiro, bem como a violência política e a violência de gênero imperantes nesse período.

Enquanto constituinte de uma preocupação acadêmica e política de registrar as experiências, as emoções e os sentimentos ligados ao trauma social dos vinte e um anos da ditadura, o curta-metragem escancara a misoginia presente nas Forças Armadas brasileiras, isto é, um ódio especial dos militares para com as mulheres presas ou na clandestinidade, posto que, além de minimizarem as torturas sofridas por elas, eles as viam como figurantes e vítimas de um poder masculino subversivo de seus familiares, amigos, conhecidos e companheiros.

Nesse sentido, o documentário, em consonância com a sua própria base documental[1] que contém mais trechos de outros depoimentos, lista alguns tipos específicos de violência direcionadas às mulheres em regimes de exceção, tendo como foco o brasileiro que durou de 1964 até 1985. Sendo assim, enumeramos: i) nos porões da ditadura, isto é, nas prisões e nos cárceres, há a violência distinguida pelo caráter sexual, que atinge o corpo, a mente e até a maternidade, quando há ameaças e torturas físico-psicológicas contra seus filhos, por exemplo; ii) quando em fuga do cárcere, uma nova vida solitária na clandestinidade afeta a vida afetiva e social principalmente das mulheres, que cortam laços com parceiros, amigos e alguns familiares; iii) nessa realidade clandestina, com a urgência de serem irreconhecíveis, elas precisam mudar suas identidades para si mesmo e para a sociedade que a rodeia, o que gera um apagamento identitário; iv) fora dos cárceres, há o luto das mães, das irmãs, das filhas e das esposas, mulheres que quase sempre estão a procurar por seus familiares desaparecidos. Nesse caso, há um duplo sofrimento de quem procura e não encontra o paradeiro dos corpos, posto que, como salientado em alguns testemunhos, aceitar a morte de um desaparecido é como se tivesse que “matá-lo novamente”.

Dentre os depoimentos colhidos, destacamos o sofrimento dos seus filhos como a tortura mais brutal e como resultado dos sentimentos de psicopatia presentes nos militares. Nessa direção, muitas mulheres militantes, para evitar passar por essa angústia, evitavam a maternidade. Partindo da hipótese militar de que a procriação iria fazer com que a subversão fosse transpassada geracionalmente, a maternidade era duramente reprimida, quando não perseguida. Desse modo, em meio a essas interrupções de projetos de vida em virtude da repressão política dos militares, seguir com eles, como ter filhos, por exemplo, mesmo com a possibilidade de traumas psicológicos para ambos, era um ato de resistência.

Ademais, partindo da bibliografia filmográfica e documental, outras experiências femininas de resistência à violência de gênero presente na ditadura militar brasileira merecem destaque. Além da clandestinidade e da criação de laços de solidariedade entre as presas políticas, a (re)afirmação das mulheres como protagonistas da militância antiditatorial, e não como meras vítimas de um poder masculino subversivo, é aquela que destacaremos também como um dos principais atos de resistência devido tanto ao seu caráter subjetivo e pessoal quanto ao seu impacto nos círculos sociais das sociedades latino-americanas.

A literatura especializada em memória afirma que a cultura memorial contemporânea tem substituído a celebração de heróis pela comemoração das vítimas. Entretanto, desde a deflagração do golpe em 1964, as mulheres militantes recusaram esse papel imposto de serem vítimas de uma parcela subversiva da sociedade. Ao contrário disso, elas buscaram um protagonismo e preferiram ser vistas como heroínas da democracia, como bravamente foram e ainda são. Para tal empreendimento, essas mulheres, a partir de seus testemunhos acerca do golpe de 1964 no Brasil, buscam (re)construir narrativas verdadeiramente factuais sobre as então “memórias dominantes” do período ditatorial brasileiro, o que exemplifica o caráter social presente nas disputas pelas construções das versões sobre o passado, como analisado por Michael Pollak[2]. Desse modo, hoje, como nunca, tal papel de bravura das mulheres contra a ditadura precisa ser, enfim, reconhecido como um ato de resistência como de fato aconteceu.

[1] ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. Lembranças do golpe – 1964. Revista Topoi, Rio de Janeiro, v. 15, n. 28, jan-jun. 2014.

[2] POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, pp. 3-15, 1989.

Lucas Barroso Rego

Lucas Barroso Rego

Lucas Barroso Rego é bacharelando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e licenciando em História pela Universidade Candido Mendes (UCAM). Possui experiência com ênfase no ensino e pesquisa de História do Brasil e de contemporaneidades. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8481113958603388. Contato: [email protected]

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