O caso Miguel: por que não podemos esquecer! - Generalizando
1023
post-template-default,single,single-post,postid-1023,single-format-standard,bridge-core-2.0.9,ajax_fade,page_not_loaded,,qode-title-hidden,qode_grid_1300,qode-theme-ver-19.6,qode-theme-bridge,disabled_footer_top,wpb-js-composer js-comp-ver-6.1,vc_responsive

O caso Miguel: por que não podemos esquecer!

O caso Miguel: por que não podemos esquecer!

 

No dia 02 junho de 2021 completou 1 ano da morte do menino Miguel em Pernambuco. Ele morreu após cair do nono andar de um prédio de luxo na capital Recife. Sua mãe, Mirtes Renata Santana de Souza, de 34 anos, trabalhava como empregada doméstica para Sarí Corte Real e Sérgio Hacker. No momento do trágico acontecimento, Mirtes havia saído para passear com o cachorrinho dos patrões e deixou seu filho no apartamento com a patroa, que estava fazendo as unhas. Como mostraram as imagens das câmeras de segurança do prédio, Sarí colocou o menino no elevador e minutos depois ele caiu do nono andar.

Um pouco mais de um ano após o acontecido, Sarí responde judicialmente a três processos  em liberdade, após pagar uma fiança de 20 mil reais. Para Mirtes, a mãe resta a saudade do filho e a esperança de que a justiça seja, realmente, feita. Mirtes, em entrevistas recentes, afirmou que seu propósito é não permitir que o caso de Miguel caia no esquecimento. Como sabemos, em um mundo de tragédias anunciadas, o que choca hoje é esquecido pela sociedade no dia seguinte, sobretudo quando as vítimas são sujeitos invisibilizados.

O caso de Miguel é simbólico, por isso não deve ser esquecido. Ele é atravessado pelo racismo, uma chaga social que carregamos por causa da escravidão. O que aconteceu com ele (e que acontece com tantos outros meninos (as) negros (as) periféricos (as), diz muito sobre a desigualdade escancarada entre pretos e brancos no Brasil e sobre o racismo sistêmico presente no nosso país. Como postulado por Almeida (2018), o racismo sistêmico não é apenas um ato discriminatório e nem um conjunto de atos discriminatórios, mas um processo onde privilégios e condições de subalternidade são distribuídos entre grupos raciais. Nas palavras do autor:

Podemos dizer que o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender do grupo racial ao qual pertençam.[1]

 

Certas populações são historicamente vulneráveis. No contexto da pandemia, por exemplo, essas pessoas sentiram muito fortemente o peso da desigualdade. Mirtes, a mãe de Miguel trabalhava como empregada doméstica, assim como sua mãe. Muitas trabalhadoras domésticas não puderam fazer o isolamento social recomendado pelas agências sanitárias, pois seu trabalho foi considerado essencial. Em um país que carece de vagas em creches e escolas de tempo integral e que, durante o momento mais alarmante da pandemia, não estavam funcionando, muitas mulheres precisaram levar os filhos para o trabalho.

Ao puxar o fio, no sentido de desenrolar esse novelo, inúmeras injustiças e violações de direitos se apresentam como elementos que compõem esse quadro. A obrigatoriedade de trabalhar durante um período pandêmico, a ausência de equipamentos públicos para os filhos das mulheres pobres, a crise sanitária em si, a cor da pele e o lugar social que “permite” tratar alguns com indiferença e desumanidade.

O racismo entranhado nas nossas instituições e nas nossas relações faz parecer para o outro, o branco sobretudo, que uma criança negra de 5 anos não necessita de cuidados como uma criança branca. Desse modo, não se vê problema em deixá-lo sozinho em um elevador, por exemplo, sem o cuidado de um adulto. É esse racismo entranhado que normaliza o fato de mulheres negras, empregadas domésticas, não precisarem se cuidar, se isolar, durante uma pandemia. É o racismo entranhado que faz com que muitos de nós não se importe com a violência cotidiana sofrida por meninos e meninas negras. E é esse mesmo racismo, entranhado e velado, que permite o esquecimento de casos como o de Miguel. Afinal, nesse modelo de sociedade, algumas vidas valem bem mais que outras.

Por isso, há necessidade de lembrarmos esse caso, de exigir que a justiça se cumpra, de mexer nessa ferida e de não deixá-la cicatrizar, ao menos enquanto pessoas pobres, negras, periféricas forem vítimas da violência, do descaso e da desumanidade em nossa sociedade.

[1] ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 25.

Marusa Silva

Marusa Silva

Doutora em Sociologia Política, pesquisadora e autora de livros e artigos sobre desigualdade de gênero e integrante do Atelier de estudos de gênero da Universidade Estadual do Norte Fluminense – RJ

2 Comentários
  • Avatar
    Angélica Lira
    Publicado em 15:50h, 12 agosto Responder

    Mais um maravilhoso texto. Parabéns, Marusa.

    • Marusa Silva
      Marusa Silva
      Publicado em 10:49h, 19 agosto Responder

      Obrigada, Angélica!

Publicar um comentário