O pessoal é político - Generalizando
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O pessoal é político

O pessoal é político

O slogan O pessoal é político tem um peso bastante significativo para o movimento feminista. Ele é muito potente porque quer dizer muitas coisas e por isso, tem condições de angariar muitas e diversas apoiadoras com perspectivas diferentes.

Desse modo, devemos nos perguntar qual é a interpretação do pessoal é político mais defensável da perspectiva de cada feminismo, de cada teoria da justiça e de cada teoria da democracia?

Dentro do arcabouço da teoria política, se faz importante pensar que o  pessoal é político pode ser compreendido como elemento de transformação política, de transformação que  objetive direitos humanos, justiça, pluralismo, etc.

Um dos possíveis significados do pessoal é político é o fato de que o pessoal também constrói poder. Esse é um ponto de extrema importância para as feministas. Por outro lado, as teorias políticas tendem a fazer uma separação entre público e privado onde a segunda instância, ou seja o privado,  possui um status de poder que não deve obedecer critérios responsivos a todas as pessoas que estão sob esse poder. Assim, o público deveria ser objeto de atenção estatal, o público deveria ser regulado pelo Estado e não o privado.

Quando as feministas defendem que o pessoal é político estão afirmando que a divisão clássica do liberalismo e do republicanismo ignora que o pessoal é poder. E desse modo, poder que requer justificação para aqueles que estão sob ele. Uma defesa que se contrapõe, por exemplo, ao ditado infame que diz que em briga de marido e mulher não se mete a colher e a crença de que existem coisas que estão fora do escopo de legitimidade pública.

O pessoal é político também possui como significado a crença de que o pessoal  deve ser politizado. O que isso quer dizer? Que ele deve ser transformado em elementos que fazem parte dos questionamentos e de movimentos políticos dentro de uma democracia. O liberalismo privatiza as diferenças, pense por exemplo no fato de que o Estado liberal não deve impor uma religião às pessoas ou não pode impedir que os indivíduos escolham sua própria religião, desse modo a religião sai do público e entra no privado. Assim, o liberalismo privatiza as diferenças que estão no campo do pluralismo moral.

Bom, isso se traduz em um problema que deve ser enfrentado pelo  feminismo. Veja bem, as pessoas têm direito às suas crenças, essas fazem parte do privado e do íntimo, mas produz desigualdades. Essas desigualdades têm relevância política e pública, pois vão desde a violência doméstica a desigualdade de oportunidade no mercado de trabalho, por exemplo. Pensar o pessoal é político sob uma perspectiva feminista é enfrentar essa questão.

Como sinalizou Mackinnon[1], gênero é ubíquo, e é construído em diferentes dimensões e camadas da vida social e política. Pode se inferir a partir dessa perspectiva que gênero é construído pelo Estado e constrói o Estado. O Gênero é construído pelo mercado e constrói o mercado. Para a autora, gênero é parte central da sociedade, da mesma forma que a classe seria central para os marxistas ou a raça para as pessoas que observam a sociedade a partir da perspectiva de racialização.

Desse modo, o que interessa a Mackinnon é compreender a desigualdade e a diferença de gênero constituída socialmente dentro de relações sociais de supremacia masculina. E por que supremacia masculina? Porque são os homens que ganham com essa desigualdade (salários maiores por trabalho igual, acesso a oportunidades e a postos políticos e econômicos de prestígio e poder, as mulheres são as mais vitimadas pela violência doméstica, etc).

O que o slogan o pessoal é político quer traduzir, entre tantas possibilidades, é que as liberdades individuais podem violar direitos tanto quanto as liberdade públicas.  Assim não podemos pressupor que o poder que é exercido nas dimensões mais privadas da vida pode ser exercido acima de qualquer instância justificatória. Esse poder íntimo, intrafamiliar é construtor de boa parte das violações  dos direitos civis das mulheres e de boa parte das violações da segurança pessoal das mulheres.

Considerando que direitos civis e segurança estão entre as maiores preocupações liberais, existe aí uma incoerência na defesa de que existe um âmbito privado que está acima de qualquer necessidade de justificação pública e, por isso, não deve ser submetido a nenhum tipo de regulação.

O pessoal é político tem um sentido extremamente forte porque diz respeito a mudanças urgentes e necessárias em nome da igualdade radical entre homens e mulheres e para isso é preciso olhar para as relações do espaço privado e decidir quais delas precisam ser regulamentadas a fim de alcançarmos a justiça de gênero.

[1] MACKINNON, Catharine. Desejo e Poder. In.: MIGUEL, Luis Felipe. BIROLI, Flávia (org.). Teoria Política Feminista, Vinhedo, Editora Horizonte, 2013.

Marusa Silva

Marusa Silva

Doutora em Sociologia Política, pesquisadora e autora de livros e artigos sobre desigualdade de gênero e integrante do Atelier de estudos de gênero da Universidade Estadual do Norte Fluminense – RJ

2 Comentários
  • Avatar
    Rafael Lima
    Publicado em 14:01h, 26 janeiro Responder

    Mestra! Como sempre contundente em seus argumentos! Eu os amo! Amo mais ainda quando você me educa! Deixe me contribuir com minhas singelas moedinhas neste tema tão relavante.
    Possuo uma aversão a palavra regulamentar. Quase sempre a vejo como uma equivalência a cessão de um parcela de meus direitos à um burocrata ou político que estará longe demais de mim para sequer compreender o que eu preciso e acredito que todos podem se relacionar com isso. Abrir mão de parcelas de nossa liberdade é um caminho sem volta, é igual a preço da gasolina: na hora de aumentar sobe facilmente, contudo na hora de abaixar…
    Apesar da motivição para esta cessão ser nobre, combater supostas injustiças (espero que o suposta ali tenha extraído uma supresa), onde a sanha persecutória acabará? Claro! Hoje é sobre mulheres que humilhantemente recebem menos que homens para fazer o mesmo trabalho, ou sobre mulheres que são alvos de predadores apenas por serem o que são, mas e quando for sobre a religião que eu escolherei e ensinarei aos meus filhos ou sobre como eu me posiciono politicamente ou sobre quantos filhos eu quero ter? Quem irá decidir? Quem irá desenhar a linha? É justo isso? O poder corrompe o poder total corrempe totalmente.
    Se todo o pessoal é político e todo o político é público todo pessoal é público (obrigado Mestre Douglas pelas aulas de lógica) nesta linha de entendimento nós como cidadãos não podemos esperar privacidade? Viveremos pois num Estado de exceção, policialesco onde até os pensamentos serão monitorados, obviamente para alcançar a tal aclamada igualdade? Será essa a melhor maneira de reformar a nossa sociedade?
    Ao meu ver esse pensamento é altamente perigoso pois têm um grande potencial de nos levar a viver numa sociedade totalitária. Alternativamente entendo que a melhor maneira de transformar uma sociedade é transformar o cidadão, pode ser o caminho mais longo e difícil mas é o único em que o valor pessoal do indivíduo será igual ou superior a norma positivada e por isso mesmo as pessoas cumprirão não por que têm que fazer mas por que entendem que é o melhor à fazer.

    • Marusa Silva
      Marusa Silva
      Publicado em 07:02h, 18 fevereiro Responder

      Querido Rafael, obrigada por sua leitura atenta e crítica!

      Bom, vamos ao diálogo. Toda a carga de significado trazido pelo slogan “O pessoal é político” angaria posições diversas dentro do movimento e teoria do feminismo. Ao mesmo tempo se coloca como uma importante questão a ser pensada e enfrentada por nós, feministas. Se o privado e as relações nele engendradas produz poder, será que esse poder que se traduz em desigualdade e violência (veja as pesquisas) pode ser exercido acima de qualquer instância justificatória? Existe um limite, moralmente aceito, para politizar o privado? Como identificar esse limite? Veja…são questões importantes que precisam ser pensadas.
      O que o texto procura elucidar (não sei se fui eficiente nesse ponto) é como a teoria feminista tem questões (de cunho teórico e prático) para resolver. Não há resposta simples, ao menos eu não consigo encontrá-las e sim questões de enfrentamento. Os limites para as ações devem ser pensados dentro do arcabouço democrático, SEMPRE!
      Obrigada, mais uma vez! Sempre muito bom contar com sua leitura.

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