Brasil: o inferno para as mulheres - Generalizando
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Brasil: o inferno para as mulheres

Brasil: o inferno para as mulheres

[…] E, no tribunal, todos dizem que a culpa é nossa; Nós, mulheres, sabemos provocar. Sabemos infernizar. Sabemos destruir a vida de um cara. Somos infiéis. Vingativas. A culpa é nossa. Nós que provocamos. Afinal o que estávamos fazendo ali? Naquela festa? Àquela hora? Com aquela roupa?[…]

MELO, Patrícia. Mulheres Empilhadas. São Paulo: Ley, 2019.

 

 

Decidi iniciar esse texto com a citação do livro Mulheres Empilhadas da escritora Patrícia Melo. Um romance que traz à tona o debate sobre o feminicídio, uma triste realidade com que as mulheres brasileiras convivem.

Se você acompanha as publicações do meu blog deve se recordar que no último texto tratamos da violência contra a mulher a partir de uma análise história. E não é que hoje, você leitora se depara novamente com um texto sobre essa temática? Pois é, o que motivou a escrita dele foi o desenrolar do caso Mariana Ferrer em que o acusado de ter cometido estupro, André Aranha, foi inocentado.

O portal The Intercept Brasil teve acesso aos registros dos advogados do acusado humilhando Mariana Ferrer sem que o juiz interviesse, demonstrando a face misógina da justiça brasileira. A defesa do empresário apresentou cópias de fotos sensuais produzidas pela jovem antes do crime como reforço ao argumento de que a relação foi consensual. O advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho analisou as imagens, que definiu como “ginecológicas”, sem ser questionado sobre a relação delas com o caso, e afirmou que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana. Os absurdos continuaram e o advogado repreende o choro da vítima “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”. Um festival de horrores que aconteceu com a cumplicidade daqueles que “guardam” as leis.

Há muitas formas de matar mulheres. Antes da violência física que retira a vida da vítima, muitas de nós somos violentadas, vilipendiadas e assassinadas enquanto seres humanos. A dúvida plantada sobre nossa moral é sempre a escolha para destruir a nossa credibilidade. Afinal em uma sociedade misógina e patriarcal quem vai acreditar na “palavra” de uma mulher que não possui o comportamento considerado adequado, mesmo isso não tendo relação nenhuma com o caso julgado? As fotos de Mariana, foram usadas para demonstrar o “tipo” de mulher que ela era. Perigosa, interesseira e desejando aparecer, de acordo com a defesa do acusado.  O que se viu nas imagens divulgadas pelo portal de notícia citado acima é vergonhoso e doloroso, não só para Mariana e seus familiares, mas para todas nós mulheres e deveria ser também para toda a sociedade.

A banalização da violência contra a mulher é parte constituinte do modo como a sociedade e as nossas instituições se organizam. Fechando os olhos, minimizando e até mesmo reforçando o preconceito e a dominação masculina. Como é possível que condições de existências das mais intoleráveis, como é o caso da violência contra a mulher, possam ser percebidas como aceitáveis ou toleráveis? Inclusive depois de tantos avanços humanitários? Bourdieu (2020, p. 11), ajuda-nos a compreender como as estruturas com as suas relações de dominação, seus direitos, suas imunidades, seus privilégios e suas injustiças se perpetuam.

O autor[1] percebe a dominação masculina como um exemplo “perfeito” da chamada violência simbólica, que é violência suave, insensível, invisível muitas vezes às próprias vítimas. Ela se exerce pelas vias puramente simbólicas, dando a tônica de normalidade, de naturalização. E nesse cenário, as instituições reproduzem essa dominação, tratando as mulheres como inferiores, como sujeitos duvidosos sobretudo quando está na centralidade o tema a violência sexual.

Operando por essa lógica, utilizam argumentos que tendem a desmoralizar as vítimas. Colocando-as no lugar de culpadas e/ou merecedoras da violência perpetrada contra elas. Ora, a violência contra a mulher não desapareceu como a caça à bruxas e a abolição, como nos informa Silvia Federici. Ao contrário, ela foi sendo ressignificada ao longo do tempo. Se na década de 1950 do século XX a lobotomia era indicada para a cura de mulheres depressivas e histéricas[2],  hoje a violência se apresenta como o estupro, o feminicídio, a difamação e outra tantas formas.

A decisão da justiça no caso em análise é uma das faces ressignificadas dessa violência institucionalizada. A sentença inédita de estupro culposo, tira a responsabilidade daquele que é o agressor, pois o considerou incapaz de saber que durante o ato sexual, a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo, portanto, “INTENÇÃO” de estuprar. Com um crime não previsto em lei, Aranha foi absolvido, restando a todas nós mulheres sentir essa sentença como se fosse nossa, porque de fato ela é. Uma confirmação da explícita violência que se perpetua em nossa sociedade contra todas nós com a cumplicidade de instituições, da justiça e de parte da sociedade. Resta-nos alimentar a sororidade e tirar forças para denunciar todos esses abusos.

 

[1] BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina: a condição feminina e a violência simbólica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

[2] FEDERICI, Silvia. As Mulheres e a Caça às Bruxas. São Paulo: Boitempo, 2019.

Marusa Silva

Marusa Silva

Doutora em Sociologia Política, pesquisadora e autora de livros e artigos sobre desigualdade de gênero e integrante do Atelier de estudos de gênero da Universidade Estadual do Norte Fluminense – RJ

1 Comentário
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    Angelica
    Publicado em 10:33h, 05 novembro Responder

    muito bom, como sempre, seu texto. Abordagem segura da representatividade que vc tem nesse movimento maravilhoso, que é o feminismo e a busca por direitos cada vez mais sendo desrespeitados. Sigamos em frente, com essa luta secular, que jamais será abafada por esses estereótipos machistas e preconceitos enraizados da sociedade.

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