Como as mulheres são vistas pelos homens? - Generalizando
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Como as mulheres são vistas pelos homens?

Como as mulheres são vistas pelos homens?

“Se as mulheres fossem por natureza iguais aos homens, se tivessem no mesmo grau a força de alma e o engenho em que consiste maximamente a potência humana, e, consequentemente, o direito, com certeza, entre tantas nações diferentes, não poderia deixar de se encontrar umas em que ambos os sexos reinassem igualmente e outras em que os homens fossem governados pelas mulheres e recebessem uma educação própria para diminuir seu engenho. Mas, como isso nunca se viu em parte alguma, pode-se afirmar, em termos gerais, que as mulheres, por natureza, não têm o mesmo direito que os homens, mas que deverão necessariamente ceder aos homens, e também que é impossível que ambos os sexos reinem igualmente e, muito menos, que os homens sejam regidos pelas mulheres”.[1]

“Eu descobri porque mulher da gente é um bicho chato pra c******. Sabe quem é o culpado? É a tal da Maria, Maria da Penha. Se a Maria da Penha não tivesse feito aquela lei. Se tivesse uma lei assim ‘Você está casado e está vivendo com uma mulher há mais de três meses, você tem direito de enfiar a porrada se ela te encher o saco’. Toda mulher seria maravilhosa, seria calminha”.[2]

 

Calma, você não clicou no texto errado! Não se trata de uma publicação sexista e nem de fake news. Escolhi começar o texto dessa semana com dois fragmentos que estão alocados em tempos históricos distintos. O primeiro é do século XVII, do filósofo Spinoza, um importante representante do racionalismo e da filosofia moderna. O segundo pertence ao século XXI e sua autoria é Ricardo Roriz, uma empresário que foi denunciado por filmar e divulgar vídeos na internet, de mulheres fazendo ioga na Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.

Apesar de serem separados por mais de três séculos, esses fragmentos apresentam em comum o desprezo pela mulher enquanto indivíduo e servem à demonstração do patriarcalismo como estrutura de poder reinante há muito tempo nos contextos sociais. Spinoza nega a autonomia às mulheres, defende que elas, assim com as crianças e os criados estão sujeitas aos homens, pois seriam “mentalmente” desiguais. A mesma ideia de sujeição está exposta na opinião que o empresário carioca tem sobre as mulheres. Sujeição essa que daria “direito” ao homem/marido de bater em sua mulher, como maneira de torna-las dóceis.

A visão de Spinoza é próxima de seus contemporâneos que também negavam às mulheres direitos, classificando-as como inferiores, incapazes e inadequadas para tomar decisões racionais. Malebranche, no século XVII, escreveu “a delicadeza das fibras cerebrais nas mulheres significa que tudo é abstrato e incompreensível para elas.”[3] Em outras palavras, o mundo da razão é incompreensível para as mulheres.

Alguns estudiosos afirmam que, por ser o Tratado Político de Spinoza fruto do seu tempo, a obra deve ser relativizada, especialmente no ponto onde se discute a condição da mulher. Para esses autores, se o filósofo vivesse mais tempo, talvez tivesse revisado a obra. Outros apontam para a misoginia implícita nos escritos. Polêmicas e discordâncias à parte, o fato é que Spinoza nega, o direito político às mulheres sob a justificativa de sua desigualdade intelectual.[4]

Saltando no tempo, chegamos ao século XXI no Brasil, onde ainda nos deparamos com situações bizarras como as protagonizadas pelo Sr. Ricardo Roriz. O cidadão citado aqui costuma frequentar espaços públicos para fazer vídeos de mulheres sem permissão. Em depoimento na delegacia afirmou que seus vídeos e suas postagens possuem cunho humorístico. Ora, filmar mulheres fazendo atividades sem a sua permissão e ainda divulgar nas redes sociais não parece, para qualquer ser minimamente responsável, uma coisa divertida ou engraçada.

Esse cenário nos leva a algumas importantes reflexões. A primeira é a conduta de alguns homens que se sentem no direito de invadir a privacidade das mulheres, tomando para si fotos e vídeos e divulgando nas mídias sociais, uma prática carregada de machismo, que toma a mulher como objeto. O corpo feminino é o corpo público em uma cultura patriarcalista. Um corpo que pode ser usado, maltratado, violentado das mais diversas formas, haja vista a sua fala criticando a lei Maria da Penha e idealizando uma norma jurídica onde o marido tenha o direito de bater em sua esposa.

Uma segunda reflexão é sobre a manutenção desse tipo de conduta nos dias atuais. A sustentação dessas práticas estariam enraizadas na dominação masculina de acordo com Bourdieu[5] e esse tipo de dominação é responsável por fazer parecer normal e/ou banal situações de violência e preconceito contra as mulheres.

Se no século XVII importantes pensadores “definiam” a incapacidade intelectual da mulher como algo natural que a tornava sujeita aos domínios masculinos, sem direito a autonomia individual e política. No século XXI permanece, em muitos indivíduos, crenças parecidas que colocam as mulheres como mercadoria que devem satisfazer as suas vontades e os seus desejos masculinos sem que a autonomia feminina seja considerada e respeitada. De fato, seguimos sendo vistas como indivíduos menores e inferiores, por muitos homens. As conquistas no tocante a igualdade de gênero ainda não foram capazes de impedir esse tipo de atitude, mas permitem questionar, reivindicar e exigir que os direitos femininos sejam respeitados.

 

[1] Trecho da obra intitulada: Tratado Político de Spinoza.

[2] Disponível em: www.g1.com.br. Acessado em: 14/08/2020.

[3] Filósofo racionalista e padre francês

[4] Sobre obras que concordam e discordam da perspectiva negativa dada à mulher por Spinoza ver: RODIS-LEWS. A “INFERIORIDADE DA MULHER EM SPINOZA”. RICE-LEEE. A IMPORTÂNCIA DA SEXUALIDADE EM SPINOZA.

[5] BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

Marusa Silva

Marusa Silva

Doutora em Sociologia Política, pesquisadora e autora de livros e artigos sobre desigualdade de gênero e integrante do Atelier de estudos de gênero da Universidade Estadual do Norte Fluminense – RJ

4 Comentários
  • Avatar
    Nilza Anido Lira
    Publicado em 19:42h, 18 agosto Responder

    Muito atual e pertinente seu texto.
    Clarifica e constata como, em pleno século XXI, ainda temos falas e comportamentos tão antigos, que nos faz duvidar do respeito às conquistas femininas na luta por igualdade de gênero.
    Parabéns

    • Marusa Silva
      Marusa Silva
      Publicado em 11:41h, 21 agosto Responder

      Obrigada, Nilza! Seguimos firmes!

  • Avatar
    Lívia
    Publicado em 20:45h, 18 agosto Responder

    Excelente texto, minha amiga! Lembro – me muito bem de um professor na minha época de residência médica que me dizia que eu fazia o meu trabalho muito bem, como se fosse um homem! Inacreditável!

    • Marusa Silva
      Marusa Silva
      Publicado em 11:42h, 21 agosto Responder

      Lívia, essa manutenção que precisa ser questionada. Vamos seguir lutando.

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